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FAMOSO

Atualizado: 26 de abr. de 2022

— Então, meus olhos me enganam ou esse é o famoso Guimarães?

— Fa-famoso?

— Pô, se é famoso? Se você é famoso? Seja bem vindo, meu amigo. Pessoal, chegou o Gruimarães aqui, ó!

Entre os transeuntes ao redor ecoaram gritinhos de "aê, Guimarães" e "Mentira, é ele?" e misturavam-se a outros de "não acredito!" ou "eu morri pra ver isso!". Um grupo dos mais curiosos se formava, mas o porteiro enxotou-os com gestos do braços e abriu espaço e, logo, todos voltaram ao fluxo de caminhar para onde iam.

— Mas... mas, sou só eu. Como posso ser fam--?

— Ah, com essa modéstia aí não posso te deixar entrar, hein? Hein? — Esse disse, cutucando o Guimarães nas costelas com o cotovelo e piscando um olho.

— Entrar? Esse portão, essa luz... Eu MORRI?

— Óbvio que morreu, Guima. posso te chamar de Guima? Claro que posso. Guima, meu querido, você foi corajoso, hein. Guimão Antivax. — Disse enquanto separava as mãos espalmadas desenhando uma placa imaginária com elas. — Curtiu? posso mandar bordar no seu robe, atrás, grandão... com um "10" como se você fosse o craque do time, hein? hein? — Cutucou de novo.

— Eu morri porque não vacinei?

O outro gargalhou.

— Esse Guima! "Morri porque não vacinei?" — e riu abertamente — Esse Guima!

Então o porteiro o abraçou por sobre os ombros, como se fossem amigos caminhando pra casa e levou-o um pouco mais pra perto do portão que começava a se abrir enquanto a névoa de dentro se expandia para além dos limites das grades e a luz tornava-se mais forte.

— Guima. Guimão. Você é muito famoso aqui, cara, por tudo que fez e pela coragem que teve quando estava vivo! Isso, claro, além de suas convicções fundamentalistas bíblicas e sua capacidade de julgamento do caráter alheio. Cara, você era muito, muito bom em julgar as pessoas, hein, Guimão? — Ele cutucava o peito do Guima com o indicador.

— E-eu só fazia o que era preciso. - Guima já estava mais descontraído e começando a se soltar.

— Lembra quando você gravou um vídeo sobre aquela mãe que tinha apanhado da polícia tentando proteger o filho que tinha roubado pão?

— Lembro... e-eu, l-lembro sim... foi legal?

— Ô, se foi LEGAL? FOI SENSACIONAL! Olha aqui, olha AQUI. — Ele puxou a manga e tinha tatuado no braço a frase: "Eu matava a mãe e o filho". — Eu tatuei a sua frase, meu irmãozinho. Ta-tu-ei!

Depois veio um silêncio onde Guima esboçava um sorriso orgulhoso movendo afirmativamente a cabeça enquanto contemplava a proximidade dos portões.

— E agora você tá aqui. Porra, Guima, você finalmente chegou!

— Pera aí...

— Que foi, Guimão.

— Você disse um palavrão?

— Foi?

— Foi. Você disse...

— Disse não, disse?

— Disse!

— Nada!

— Disse, sim... você disse "por..." — e fez um gesto que indicava que a palavra continuava.

— Ah, Guima, foda-se, né?

— M-mas... mas?

— Mas o que? Caralho, Guima, mas o quê?

— P-po-pode falar essas coisas aqui?

— Ah não brinca, Guima. — Ele cutucou Guima com o cotovelo. — Esse Guima.

— É, então... tá bom.

— Que mais que você fez? Deixa eu lembrar aqui...

— Eu fui ativo nas redes sociais, espalhando a verdade...

— Foi mesmo, Guima, mandava uns zap sinistroooo... Plim, "a terra é plana, a Nasa falsificou as fotos", plim "vacina atrofia o cérebro", plim "chupeta de piroca", plim "kit gay nas escola com dinheiro público". — Ele ia imitando alguém digitando e enviando mensagem no celular. — Plim, "não confie na imprensa livre", plim "tortura é bíblica", plim "quem vive pela espada morre pela espada, entenda porque Deus aprova a morte de militantes", plim, plim, plim, plim... eu te amoooooo, cara! Você foi importante demais, Guima.

— Eu também fiz protesto anti-vacina e salvei vidas...

— Você realmente fez uns protestos, lembra que você ficou gritando que não queria um chip demoníaco no seu corpo?

— Lembro! Maldito Chip!

Dessa vez o porteiro achou estranha a entonação da resposta do Guimarães.

— Pera. Guima... Fala de novo!

— Maldito chip do demônio!

— Ih, caralho... V-você não tava zoando, não?

— Zoando? Eu brincaria com um assunto tão importante?

O porteiro arriscou rir, ele tava brincando, claro, mas Guima ficou impassível. Ele deu uma cutucadinha com o cotovelo e ia soltar um "esse Guima", mas as feições do recém-chegado não mudaram.

— Ah não, Guima, logo você, cara? O Guima, o Guimarães é um desses...

— Sou o que ?

— Puta que pariu, Guima... Você fazia aquilo de verdade? Não era criando intriga e fakenews de propósito pras pessoas ficarem confusas? Sabe? "Não vacine seu filho" — O porteiro sacudiu os braços meio pro alto numa dança estranha. — "O movimento sem terra vai morar no seu apartamento"... Cortina de fumaça pra esconder a verdade, o que realmente acontece...

— Cortina de fumaça?

— Ahhh, Guima, não me fode Guima. PUTA QUE ME PARIU! Tu acreditava nos chip e os caralho? Porra Guima. Antivacina, Guimaaaaa? Porrraaaaaaaaaa.

Silêncio.

— E-eu achei que era ver--

— Não completa, Guima.

— dade!

— PUTAQUEPARIUCARALHOU, GUIMAAAAA!

— Não tem como ser mentira, afinal, você mesmo disse que foram as minhas sólidas convicções bíblicas que me trouxeram definitivamente para a morada celestial.

Primeiro o porteiro paralisou e olhou pra Guimarães surpreso e a boca foi tremendo, segurando, resistindo, mas então explodiu numa gargalhada aguda e altíssima.

— Coééééé, porra! Tu acha que aqui é o céu? Não mete essa Guimaaaaaaa!

— M-mas e-eu não to no céu?

— Não né Guima, não tá na porra do céu, né Guima?

— Então, o-on-onde?

O Porteiro só sorriu, malicioso, inclinou a cabeça deixou o sorriso virar uma careta e abriu os braços espalmando as mãos para cima.

— N-não... não p-p-pode ser! Como eu vim parar aqui?

— Agora tá me ofendendo, cara. Como assim? Você achou que ia pro céu? Você tá me magoando pô, achei que a gente ia ser amigo.

— Eu segui a Bíblia...

— Só a parte que te agradava, né, Guima. Como todos fazemos aqui... tem um cara que riscou todos os nãos da bíblia com canetinha e ficou cheio de coisas tipo: "cobiçarás a mulher do próximo". Teve um que mandou matar o amigo, teve que ser arrastado lá pra dentro e ficou gritando "mas Davi também fez isso"... Teve um que lia Adult"é"ra em vez de adúltera numa passagem aí e criou uma seita de suruba e tudo...

— Não pode ser.

— Ih, Guima, porra. Achei que tu era mais... sabe? Achei que tu era meio cuzão de propósito, meio filhadaputa... Eu te adorava.

— Não fui, não. Eu estava pensando na família e nos bons costum--

— Porra Guima, tu queria que o moleque morresse por roubar PÃO. Guima, o moleque de oito anos tava com fome. Até eu que sou um demôn-- porra, até eu, Guima, sei que isso tá errado. Tu achou o que, meu brother?

— Mas ele era um ladrão.

— Tu não sabe que quando o outro lá morreu, o cara lá. — Abriu os braços e colocou a língua pra fora imitando um morto. — Esse.... sabe quem é?

— Jesus!

— AHHHHHH, não fala isso AQUI! — Alguns demônios fugiram assustados. Uma mais velha tapou os ouvidos de outro mais novo que passava por ali e olhou pra Guimarães de cara feia.

— D-desculpe? — Ele não sabia o que falar.

— Pô, Ele salvou um ladrão, Guima, tu sabe disso... andou com umas puta, uns ladrão, uns bandido. Tu leu essas parada. Tu não tava ali de enganado né, Guima?

— Eu fui uma pessoa de bem, um cidadão.

— Ah não fode, Guima, tem um bairro aqui no inferno que tem uma rua com teu nome, porra.

— Ah, não! Ah não, mas eu achei que estava agind--

— Que depecção, Guima... eu tatuei tua frase, porra, e tu era um otário?

— Eu não sou.. fui nenhum otár--

— Ah, não? Terra Plana, Guima? Você achava de verdade que a Terra é PLANA, porra? — Agora ele deu um tapa um pouco mais forte do que queria na cabeça do Guima. — Você acha que a porra das fotos são o que, seu idiota? Tu acha que o sol se põe como? Alguém puxa a cordinha e ele apaga? Queria que aqui fosse plano pra eu te jogar da beirada, Guima, tu era meu herói! Caralho o Guima é um imbecil!

— Ei, ei... respeita...

— Respeitar, Guima? Pera aí, agora tua pergunta... quando tu falou da vacina... Porra... tu não tomou vacina numa pandemia, cara? Eu achei que era parte do teu plano... Mandar os OUTROS não se vacinar, mas você né... você se vacina, porra! É uma pandemia, Guima, poxa... me ajuda aqui...

— M-mas o chip...

— Tu já viu um microchip? Como o chip passa na agulha Guima, porrraaa? Tu acha que existe nanorobô de filme da Marvel? Caralho, anti-vacina e era de verdade. Guima era uma pandemia e tinha vaciiiinaaaaa... eu achei que você tava querendo o caos e tu só era burro, Guima? Pô, chega... VEM... PODE VIR... PODEM LEVÁ-LO.

— P-pera, pra onde eu vou.

— Antes tu ia, sei lá, chefiar uma divisão de mentiras estratégias ou uma equipe ativa na Terra de criação de caos e tormento... Melhor coisa por aqui, dá pra ficar vagando na Terra, invisível, possuindo uns crente pra dar entrevista pra passar na TV, esconder controle remoto na casa das pessoas, almoçar com uns pastores amigos, inventar anime novo... mas porra, agora tu vai pra onde você queria, né? Não pedia a volta da didatura? Não queria uma polícia mais severa? Então, todo dia tu vai acordar sem comida e tem um pão na tua frente, quanto mais fome você sentir, mais ele exala aquele cheiro de quentinho na manteiga... Só que o pão é de outra pessoa. e tem PM vigiando. Ai tu vai decidir se passa fome o dia inteiro ou tu rouba, come e apanha da polícia... foda, né? Justiça poética que chama... Agora, vai. Vai!

Surgiram uns policiais militares para arrastá-lo contra a vontade em direção ao portão. Ele se debatia e quanto mais parecia desesperado mais o sorriso dos guardas aumentava...

— Esperem. — Era o porteiro.

Eles se viraram e fizeram o novato olhar pro porteiro.

— Guima...

— Oi?

— Você fez aquele post sobre arte recentemente... o que você realmente...

— A arte tem que ser despolitizada porque...

— Tá, tá! Leva ele!


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